segunda-feira, 18 de abril de 2011

Pinóquistein O Boneco da Ópera





Era uma vez, um carpinteiro fabricante de brinquedos chamado Geppetto. Um dia teve a idéia de criar um boneco, utilizando restos de outros, e de madeira velha. Um braço de um aqui, outro ali, uma perna mais comprida que a outra... Deixou o corpo oco e num pedaço de pinheiro, entalhou um coração, colocando-o dentro dele. Olhou-o deitado sobre a mesa, virou-o de bruços e viu que algo estava faltando. Com seu velho formão fez o último ajuste. Entalhou as nádegas. Para que ficasse o mais natural possível, colocou uma velha e frouxa rodinha, de um carrinho abandonado. Trabalhou dias e noites sem descansar.


— Maravilhoso! — exclamou o velho enquanto ajeitava os óculos no rosto. — Ficou um pouco torto, uma perna menor que a outra, mas ficou bom. — falava consigo mesmo. Cobriu o boneco com um pano e foi descansar.




Era madrugada e uma tempestade começou a cair. Trovões ribombavam. Relâmpagos desciam do céu como lanças. Um deles acertou uma árvore no quintal do velho carpinteiro. A faísca cruzou todo o quintal entrando pela janela, acertando em cheio o peito da mais nova criação de Geppetto. O pano que o cobria incendiou-se queimando uma parte do rosto do boneco.


A Tempestade cessou, e o novo brinquedo tremelicou, uma das pernas chacoalhou e ele acordou. Os olhos se abriram, para o chão desengonçado ele pulou e pela roda frouxa um vento soltou. Sua boca se abriu, ele sorriu e um gosto de cabo de guarda-chuva nela sentiu.


Caminhou todo desajeitado pela sala escura. Tropeçou numa caixa de ferramentas fazendo barulho. Geppetto que estava acordado por causa dos trovões, com o barulho levantou. E, pé, ante pé, até a sala, e com um porrete na mão Caminhou.


— Quem está aí? — perguntou. — Estou armado! Estou avisando!


Estava escuro. Outro relâmpago iluminou a noite, mostrando um vulto, tortuosamente, parado num dos cantos da sala. Geppetto então acendeu seu lampião e não acreditou quando viu sua obra prima em pé, a sua frente. Lágrimas brotaram em seus olhos. Caminhou até ele e viu seu rosto deformado pela queimadura.


— Meu filho! Você está vivo? — o velho então o abraçou, nunca sentira tamanha emoção.


No caminho até o quarto havia prateleiras cheias de bonecos e brinquedos. Um espelho chamou sua atenção. Curioso o boneco parou e viu seu reflexo. Viu o quão torto era e como seu rosto era feio. Não era igual aos que estavam inertes nas prateleiras. Virou-se para Geppetto e com um olhar furioso gritou. Correu desengonçadamente de volta para a sala, viu dependurados na parede uma mascara de pierrô e um casaco, pegou-os e saiu pela noite. Geppetto tentou ir atrás dele, mas sua idade avançada e a tempestade que voltara intensamente o impediram.


Aos prantos O velho Geppetto decidiu apagar o maldito lampião que o fazia lacrimejar.


— Para onde ele foi? Pobre coitado. O que será dele. — lamuriava o velho.


O menino de madeira correu, correu muito, escorregou e rolou barranco abaixo. Foi levado por uma forte enxurrada. Ficou desacordado e atolado na lama por três dias, até que despertou e com muito esforço do barro se desvencilhou. Caminhou mais quatro dias até chegar perto de um lago onde uma garotinha brincava na margem. Ela assustou-se com a figura torta, desequilibrou-se caindo dentro d’água. A pequena gritava por socorro, entre uma golada e outra de água barrenta.


O boneco ao perceber que algo estava errado com a menina, entrou na água para salvá-la, mais por mais que tentasse não conseguia afundar para buscá-la. Viu uma grande pedra na margem, e com cipós, amarrou-a a cintura, mas era tarde demais. A menina estava morta. Populares que ouviram os gritos da menina chegaram no momento em que a criatura saia de dentro do lago, com a menina nos braços. Acharam que o algoz era o lúgubre boneco e tentaram linchá-lo. Não teve outra opção se não fugir mais uma vez. Embrenhou-se na mata e caminhou até chegar a uma cabana, escondendo-se no celeiro, onde adormeceu. Após algumas horas de sono tranquilo, acordou com uma maravilhosa voz, que soava fortemente.


Olhou por uma fresta na parede de tábuas e viu um homem que cantava com voz belíssima, num tenor de arrepiar. Percebeu que o dono da belíssima voz era cego e começou a ajudá-lo nos afazeres domésticos e nas colheitas de batatas. Tudo sem que ele percebesse. Até que um dia sua roda frouxa o traiu.


— Quem está aí? — pergunto o tenor cego.




Caminhou tateando até o celeiro.


— Eu sabia que tinha alguém aqui. É você que vem me ajudando não é?


— Sim! — respondeu o boneco num sustenido sem igual.


— Venha, vamos entrar. Alguém com uma voz tão bela só pode ser bom. Deixe-me ver como você é.


O boneco aproximou-se, deixando que ele tocasse em seu rosto. Logo o homem percebeu que algo estava estranho. Duro como madeira e com o rosto deformado desistiu da idéia, achou melhor não saber como era seu visitante.


Moraram juntos por muito tempo. Tempo suficiente para a criação de Geppetto tornar-se um exímio cantor de óperas. O títere amadeirado estava fora, atrás de provisões para o professor e amigo de canto, quando ladrões apareceram para saquear a cabana e acabaram por encontrar o homem cego.


Torturaram-no até a morte. Quando o boneco chegou, encontrou a porta do casebre aberta e seu mestre caído no chão. Com um corte profundo em sua barriga, que deixava amostra suas tripas, esvaia-se em sangue enquanto sussurrava para seu pupilo.


— É você? Fuja! Não deixem que o vejam... — foram as últimas palavras do homem.


— Ora, ora. O que temos aqui? — perguntou com voz ameaçadora um dos ladrões. — Vamos pegá-lo, Vladinóleo.


— Sim Ladinóleo, deixa comigo.


O ladrão partiu para cima dele e os dois rolaram no chão. Com seu nariz avantajado e pontiagudo, perfurou um dos olhos de Ladinóleo.


— Um boneco de pau, que anda sem cordéis? Só pode ser feitiçaria! — disse Vladinóleo, já o agarrando por trás. — O chefe vai gostar muito disso.


Amarrado, foi jogado junto com as coisas que roubaram da cabana, no fundo da carroça.


— Olha só o que encontramos chefe. — disse Vladinóleo.


— Esta coisa furou meu olho. — resmungou Ladinóleo.


— E o que isso faz? — perguntou o chefe. — Cadê as cordas que o movimentam? — perguntou ele achando que se tratava de uma marionete. — Se isso for brincadeira arrancarei suas línguas.


— Claro que não chefe. Ele está vivo, de verdade. — disse Ladinóleo arrumando o tampão no olho vazado e empurrando o ser desengonçado.


— O que você sabe fazer? — perguntou o chefe. — O que você esconde atrás desta mascara? — puxou-a rudemente. — Ah! — assustou-se! — É melhor você ficar com ela.


O chefe dos ladrões olhou-o de cima a baixo. Viu que uma perna era mais curta que a outra, que os braços eram desiguais, sem falar na deformidade de seu rosto.


— Bem, uma coisa te digo. Só falta uma corcunda para você ficar completo. Todos riram.


— O que você sabe fazer? Anda desembucha?


Ele viu que não teria escapatória e achou melhor cooperar.


— Só sei cantar... — cantarolou ele em lá maior e com uma voz exuberante. — Ópera. — disse ele num tenor estupendo.


Todos se espantaram com a beleza da voz do menino boneco deformado. Naquele instante o chefe dos ladrões viu uma mina de ouro.


Começou a cantar em cabarés, depois passou para teatros pulguentos. A noticia de que existia


um boneco cantor de óperas se espalhou chamando atenção dos entendidos no assunto.


— Precisamos de um nome para ele. — disse o chefe.


— Que tal Pavarotti? — disse Ladinóleo.


— Não! É um nome sem expressão. — respondeu o chefe.


— Plácido! O que acham? — disse Vladinóleo.


— Não combina com ele. — retrucou o chefe. — Já sei, vai ser Pinóquistein O Boneco da Ópera.


Os dois ladrões entreolharam-se. Ladinóleo apenas com um olho. E torceram o nariz.


— Nossa chefe, o senhor é bom mesmo em dar nomes. Haja vista os nossos. — o outro só concordou balançando a cabeça.


E logo cartazes espalharam-se por toda acidade. Extra! Extra! Boneco de Pau Cantor de ópera... Hoje apresentação de Pinóquistein O Boneco da Ópera... Boneco cantor é a mais nova sensação da cidade...




Pinóquistein ficou famoso, mas quem ganhava com isso era a quadrilha de biltres. Vivia em regime de escravidão. Algumas pessoas achavam que ele era uma aberração, fruto de alguma feitiçaria. Sempre apareciam alguns malucos tentando invadir os teatros onde se apresentava. Certa vez ao entrar em seu camarim deparou-se com uma caixa cheia de cupins, sobre a mesa.


A única vez que ganhou alguma coisa foi após uma apresentação perfeita, inesquecível e colossal, onde ele encenou a ópera Pagliacci de Ruggero Leoncavallo. Ganhou uma noite com uma prostituta vestida numa camisola azul, que o forçou a experimentar ópio, e garantiu que o transformaria em homem de verdade.




— É sua primeira vez? — perguntou a moça do baixo meretrício.


— Han? — sob o efeito do alucinógeno não entendera a pergunta.


— Perguntei se é sua primeira vez? — repetiu a rameira de azul.


— Claro que não! — gabou-se mentindo pela primeira vez.




De repente uma coisa estranha aconteceu, seu nariz cresceu. Com a cabeça entre as pernas da mulher começou a ter alucinações, pois viu a vulva dela se abrir e o grelo falar:


— Venha seu boneco de pau, gostoso. Venha para mim.


— Um grelo falante? — gritou ele assustado.


— Diga que eu sou a mulher mais bela do mundo. — pediu a de vida fácil.


— Você é... — exitou. — a mulher mais bela do mundo. — e seu nariz cresceu mais um pouco fazendo a mascara descolar de seu rosto e cair.


Sua face deformada assustou a mulher. Os dois tentaram se levantar, mas zonzos pelo ópio, caíram. A mulher caiu por cima dele e teve seu coração transpassado pelo nariz pontiagudo e grande de Pinóquistein.


Sem a mascara, com o nariz e seu rosto cobertos pelo sangue da meretriz, correu todo tortuoso pelos corredores do prostíbulo, assustando a todos que apareciam para ver o furdunço. Trombou com Ladinóleo e os dois rolaram pela escada abaixo. Ao levantar-se viu suas mãos sujas de sangue. Havia perfurado a jugular do larápio com seu nariz, agora lascado, levando-o a óbito.


— Assassino! — gritou uma prostituta, com seus enormes seios apoiados no guarda corpo da escada.


— Facínora! — gritou um cliente sem roupas com sua genitália a balançar.


Assustado Pinóquistein não teve alternativa se não fugir. Escondeu-se por alguns instantes num monte de feno, mas sua velha e frouxa rodinha, denunciou-o mais uma vez.


— Aqui! Ele está aqui! — gritavam os populares.


— O boneco assassino está aqui! — gritou um cocheiro.


Ele então, decidiu voltar para a casa do seu criador, o velho Geppetto. Um mês de fuga até chegar de onde saiu. O inverno rigoroso castigava a região. Escorraçado, humilhado e perseguido, chegou esbaforido na casa daquele que seria seu ente querido.


— Papaizinhoooo! — Cantarolou num soprano estridente. — Papaizinhoooo! Geppetto lixava desanimadamente algumas peças de madeira, quando escutou os chamados. Seu coração palpitou, a lixa largou e profundamente suspirou.


— É ele! Só pode ser!


O velho foi até a porta e viu o tortuoso boneco, correndo desengonçado em sua direção.




— Meu filho! — disse emocionado o senil Geppetto, abraçando-o. — venha vamos entrar. Está muito frio aqui fora.




Já dentro da casa, Pinóquistein olhou tudo ao seu redor.




— Ouvi histórias a seu respeito. Ficou famoso por cantar ópera. — disse o velho.


— Por que não foi atrás de mim? — perguntou ele num contralto harmonioso. — Por quê? Por que esta perna é mais curta do que esta? — indagava ainda no contralto. — Este braço é diferente deste outro aqui. E meu rosto queimado e desfigurado? Por que esta roda frouxa em meu traseiro? Por quê? Por quê? — e num baixo tenebroso ele cantou. — E alma, eu tenho uma?Geppetto não tinha as respostas para lhe dar.




Murmúrios de pessoas agitadas vinham de fora do casebre. Alguém gritou batendo à porta.




— Abra! Aqui é a polícia. Sabemos que você está aí! — gritou o homem da lei esmurrando a porta com força.


— Papaizinho, esconda-me, por favor. — suplicou Pinóquistein.




Geppetto pensou e lembrou-se da velha lareira. Nunca a usara por ter problemas com a fumaça.




— Rápido esconda-se aqui. Não se mexa e nem faça barulho. — pediu o velho.




Ele colocou alguns restos de madeira, camuflando muito bem Pinóquistein.




— Já vai. Já vou abrir... Calma! Assim o senhor vai derrubara minha porta... Pois não, em que poço ajudá-lo? — perguntou Geppetto.


— Estamos à procura de uma aberração assassina. Vimos ele correndo para esse lado. O senhor notou algo estranho? Uma criatura toda torta, braços disformes...


— Não senhor. — respondeu o velho assoando seu nariz avermelhado.


— Meus homens iram vasculhar as redondezas. O senhor importa-se?


— É claro que não. Fiquem a vontade.


— O senhor poderia me convidar para um conhaque? Está muito frio aqui fora.




Geppetto titubeou, mas acabou deixando o oficial entrar, assim, não levantaria suspeitas.




— Vejo que o senhor é carpinteiro. — deduziu o oficial ao ver as ferramentas e pedaços de madeira sobre a mesa.


— É, fabrico brinquedos. — disse ele sem tirar os olhos do oficial.


— Bem feitos por sinal, mas este falta uma roda. — disse o homem, segurando um carrinho nas mãos. — A propósito quem nós estamos procurando também é feito de madeira. É um assassino cruel. Matou várias pessoas. Muito bom cantor, mas assassino. Deve ser coisa de bruxa. Temos muitas aqui por estas bandas. Tem certeza que o senhor não viu nada? — perguntou o oficial brincando com um bilboquê. — Droga! Nunca acerto isso! O senhor vai ou não vai me servir um conhaque?


— Ah! Sim! Claro! Vou buscar.




Geppetto foi até a cozinha buscar os copos e o conhaque. Demorou um pouco, pois a bebida estava na adega.




— Está fazendo muito frio estes dias. — disse o oficial.




Geppetto não ouviu.




O oficial vasculhava tudo e achou atrás da mesa um recipiente com querosene. Pegou um pouco numa cumbuca e jogou na lareira ateando fogo logo em seguida.




— Não...! — Gritou Geppetto ao ver a lareira em chamas. —...Tenho alergia a fumaça...


— Desculpe, tomei a liberdade de acender sua lareira. Está muito frio.




A madeira seca estalava. Geppetto olhava fixamente para a lareira e via o balanço das chamas.




— Senhor, acabamos as buscas por aqui, Não encontramos nada. — disse outro policial que apareceu na porta.


— Muito bem! Obrigado pelo conhaque. Qual é o nome do senhor mesmo? — perguntou o oficial.


— Geppetto. — respondeu com lágrimas nos olhos.


— O senhor está chorando?


— Não... é apenas a fumaça, ela irrita meus olhos.




O oficial jogou o resto de conhaque que sobrara em seu copo na lareira, fazendo o fogo aumentar de intensidade. Uma pequena e frouxa rodinha, em chamas, veio rolando e parou aos pés do velho e agora tristonho Geppetto.


— É só a fumaça... É só a fumaça... — repetiu ele.


— Muito obrigado. — agradeceu o oficial.




Geppetto acenou sem muita vontade, fechou a porta e se virou para a lareira, fitando-a consternado.


Passaram-se alguns minutos e de repente o velho ouviu:


— Ridi, Pagliaccio, sul tuo amore infranto, ridi del duol che t'avvelena il cor!




Geppetto, sorridente, viu Pinóquistein sair de dentro da lareira, completamente em chamas, cantando o trecho da ópera Pagliacci com um machado na mão. O sorriso do velho transformou-se em pavor e desespero. O velho recuava, incrédulo a cada passo do boneco em sua direção.




— Por quê? Ridi, Pagliaccio, sul tuo amore infranto, ridi del duol che t'avvelena il cor! Este é por uma perna ser mais curta que a outra! — o boneco desferiu um golpe com o machado, acertando a barriga do pobre velho, que se ajoelhou com a dor. — Este é pelos meus braços que são diferentes! — o títere desceu o machado em um dos braços de Geppetto. — Este é por eu não ter alma! — o velho já estava mutilado e ensanguentado, mas ainda vivo. Pinóquistein parou por um segundo, olhou bem nos olhos lacrimejantes do velho e cantou mais uma vez.




— Ridi, Pagliaccio, sul tuo amore infranto, ridi del duol che t'avvelena il cor! E este e mais este, este outro. — Pinóquistein possuído, e em chamas, desferia uma seqüência de golpes com o machado, enquanto pegava fogo. — Toma este, e este, e mais um... — sangue jorrava por todos os lados. — E mais este... — ele levantou o machado acima de sua cabeça. — ...por ter colocado uma rodinha, velha e frouxa em meu traseiro! — e desferiu o último golpe, estraçalhando a cabeça do velho carpinteiro. O boneco em chamas debruçou sobre o corpo dilacerado, incendiando toda a casa.




— Ridi, Pagliaccio, sul tuo amore infranto, ridi del duol che t'avvelena il cor! — Cantou ele, até o último suspiro de sua vida sem alma.




Tradução: Ria Palhaço, ao seu amor quebrado, Ria da dor que envenena seu coração!



Licença Creative Commons
This work is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Brasil License.

Um comentário:

  1. É dificil a gente se chocar com uma "releitura" de alguma obra. Bom, isso aconteceu comigo quando li essa história.
    É fenomenal e doentil. A dose de humor é muito boa.

    Eu realmente não parei de ler desde a hora que comecei... me prendeu.


    Gostei muito.

    ResponderExcluir